Anna narra uma história que julga comum no sentido de que frequentemente acontece, sobretudo para aqueles que têm quase setenta anos e têm medo de ainda viver, para o que der e vier. Sobretudo para o que vier, assim num por acaso de olhar descuidado e de um sorriso maroto.
Cronicas da Anna
Quase setenta anos, vários casamentos e uma grande solidão. É… Ele poderia ser descrito assim. A isto, adjetivos outros poderiam se juntar. Mas em nada iriam alterar o quadro, ainda que charmoso, inteligente, agradável e excelente profissional. Por que o que pesava mesmo era a solidão. Podia-se notar, nos momentos em que não se policiava, uma tristeza no olhar que, mesmo capaz de produzir o brilho, negava esta possibilidade.
Ele a encontrou sem planejar. Nem mesmo estava procurando. Quer dizer, não estava procurando “a” mulher. Procurava “uma”. Sempre o fazia. “A” foi o acaso criado por um olhar descuidado e um sorriso maroto que lhe escapou à censura costumeira. ‘Tava desprevenido, sabe? Nem podia imaginar! Vai daí não teve jeito: aos poucos foi se envolvendo, encantado com as afinidades, mas, sobretudo com as diferenças. Desfrutando apaixonado a beleza dos desejos da cama, da mesa… da vida. Podia até ser piegas, mas ele lia versos para ela, deslumbrado pela mutua compreensão do sentido, numa emoção da voz. Ela era mais moça. Não escandalosamente mais moça. Mais moça, apenas. Era bonito de se ver e, para ele, bonito de sentir.
Mas toda esta coisa gostosa foi só no início. Porque quando ele se percebeu gostando de verdade, e mais que isto, sendo gostado, pelo que era, pela que valia, o medo bateu. Bateu lá nele. Um medo indefinido que começou a se materializar em ações e omissões, não declaradas ou planejadas. Ele nem mesmo percebia esse distanciamento a que se obrigava, atacado por perguntas que não fazia, mas sentia. E se não der certo? E se for como das outras vezes? E se ela me deixar, assim, de repente? Que garantias eu tenho?
Para ela não dizia nada. Emudecia, cada vez mais. Uma pena! Uma pena mesmo! Os quase setenta anos de passado acumulado como um entulho, forneciam uma fonte inesgotável de razões que impediam a visão de porvir, de um projeto de vida. E ele se indagava como poderia assumir uma ligação com os problemas que tinha. Na idade que tinha. Porque problemas para ele, além de não poderem ser compartilhados, não tinham solução. E continuava o martírio: afinal quanto me custará recomeçar? Quanto tempo ainda tenho?
Engraçado! Ele não percebia que esta última pergunta não tem sentido, em qualquer idade. Em todas estas dúvidas ele encontrava razão para uma confortável e triste imobilidade, para não mudar, para não ousar, para não arriscar. E vai daí que não mudou, e vai daí que não ousou e vai daí que não arriscou.
E ela foi murchando. Sofria sem entender os sumiços, as palavras dúbias, o não dizer. Foi um bocado triste. E foi então que ela começou a desgostar. Sofria e desgostava. Sofria e desgostava.
Primeiro numa proporção que pendia mais para o sofrimento, para a dor. Mas com o passar dos dias foi-se voltando para o desgostar. Desgostar até dela mesmo. E chegou o momento em que isso foi tão forte que exigiu um fim, para que ela pudesse viver, para que ela pudesse sobreviver. Mais ainda, para que ela pudesse guardar na lembrança as coisas boas – tão boas – sem a raiva, sem a mágoa.
Para ele, o desenlace significou a retomada dos “quase setenta anos, vários casamentos e uma grande solidão”. Só que agora essa solidão parecia bem maior. E, porque não conhecia outra maneira de pensar as coisas, ele comodamente acreditou que todo o tempo havia estado coberto de razão. Viu só como ela se foi? Viu só?! Se tivesse arriscado teria dançado!
Esta é uma história comum. Comum no sentido de que é frequente, usual e costumeira, sobretudo para aqueles que têm quase setenta anos e têm medo de ainda viver, para o que der e vier. Sobretudo para o que vier, assim num por acaso de olhar descuidado e de um sorriso maroto.
Na apresentação de um documentário de Joaquim Assis sobre o medo há uma frase: “Existem pessoas que passam a vida impossibilitando o desejável para depois desejarem o impossível”.
Eu, heim? Que desperdício!